A peça “Azirilhante”, com Flavia Melman, parte de um episódio curioso: a mãe da atriz “comprou” uma estrela e deu a ela seu nome de solteira, Asrilhant. O ponto brilhante tornado mercadoria fica na Constelação Cassiopeia e, no convite da peça, é possível descobrir sua latitude, longitude, classe espectral e outros termos peculiares aos mapas de astronomia.
Flavia descobriu a compra pouco tempo depois da morte da mãe. Naquele momento, riu e experimentou um tanto de solidão, como conta em entrevista exclusiva ao Colherada. É exatamente assim, misturando sentimentos, que o monólogo se constrói.
A figura central é a mãe de Flavia, recriada com pinceladas de humor e melancolia. As outras personagens são Flavia quando criança e na fase adulta. Na intimidade da cozinha, ambas testemunham os movimentos da outra mulher, às vezes díspares, às vezes incompreensíveis — um contato íntimo com a bipolaridade.
A densidade poética da peça sai daí. E o texto de Daniela Duarte, que também dirige o monólogo, não censura nenhuma das interpretações possíveis, das mais duras e tristes às mais absurdas e divertidas.
A seguir, Flavia conta como foi entrar nesse universo. Confira:
Colherada Cultural: É real a história de que você decidiu montar a peça após achar um comprovante de “compra” de uma estrela? Como foi essa descoberta e o que ela despertou em você?
Flavia Melman: Eu realmente achei esse comprovante nas coisas da minha mãe. Tive duas reações simultâneas: achei muito engraçado e a cara da minha mãe. Por outro lado, uma tristeza, pois comprar uma estrela me pareceu algo muito longe e solitário. [São] segredos que não sabemos às vezes das pessoas mais próximas. Acho que todos carregamos esses segredos. A decisão de montar a peça veio alguns anos depois, e não estava diretamente ligada à estrela, mas sim ao meu desejo de tranformar tudo aquilo em arte e de criar um espetáculo que me (nos) trouxesse para o simples da vida e nos relembrasse do que é realmente importante viver. Pois foi esse o grande presente que a minha mãe me deixou. A história e o encantamento com a estrela veio por parte da Daniela [dramaturga que dirige a peça]. Quando contei a história, ela começou a chorar e seis dias depois apareceu com a primeira versão escrita do texto. Depois, seguiram-se 12 tratamentos deste texto inicial.
C.C.: Quanto tempo depois da morte de sua mãe você descobriu a Azirilhante?
F. M.: Pouco tempo, talvez duas semanas. Mas essas vendas de estrelas são simbólicas, não são oficiais para os cientistas, apesar de haver uma localização no registro [de compra]. O que não fazem hoje em dia para se ganhar dinheiro…
C.C.: Foi difícil fazer uma montagem tão íntima, em que você é três ao mesmo tempo, a mãe e a filha, na fase adulta e quando criança?
F.M.: Foi difícil e fácil, aterrorizante e libertador, mas acima de tudo muito muito prazeroso. Prazer na parceira com a Daniela, prazer de dizer o que queria dizer, prazer de ter uma equipe incrível junto, e o prazer maior de todos que é estar fazendo esse teatro. Um teatro que parte da simplicidade para encontrar comunicação, poesia, humor e beleza.
C.C.: Quanto tempo levou todo o processo de preparação?
F.M.: Foram três anos práticos, além dos anos de escrita minha. Escrevi vários cadernos com reflexões e ideias. Houve um momento em que o dramaturgo Leonardo Moreira escreveu um texto para mim e o diretor Otávio Dantas iniciou a direção. Depois de quatro meses percebemos que eu precisava ir por outro caminho. Aí chegou a Daniela, em 2011, um encontro que misturou arte e amizade, acho que esse trabalho só poderia vir assim.
C.C.: O que baseou a escolha do cenário, cheio de eletrodomésticos? Vem de cenas que você viveu com a sua mãe?
F.M.: A ideia era criar um espaço em parte real, em parte fantástico. A sugestão da cozinha (não é exatamente uma cozinha realista) veio de este ser o lugar da casa mais íntimo, onde afetos e desafetos são trocados, onde comemos, onde mais conversamos. E que é, ao mesmo tempo, quente e frio. E assim é também uma pessoa bipolar, cheia de contradições, como era a minha mãe.
C.C.: Aliás, o que é ficção e o que é realidade naquelas cenas e diálogos? Em que medida a Daniela Duarte alterou a sua “biografia”?
F.M.: Está tudo mixado ali, nada é ficção e, ao mesmo tempo, tudo foi reelaborado pela Daniela até virar ficção. Não acho interesante revelar, pois não é o mais importante. A Daniela alterou muito todos os meus depoimentos. Tem muita realidade da própria dramaturga no texto final. E, afinal, será que a nossa história é só nossa? Talvez seja apenas nós que contamos, mas ela já é reinventada a cada vez que expomos uma narrativa “pessoal”.
C.C.: A peça tem um forte aspecto poético, sobretudo quando faz referência às asas. Sua mãe era, assim, poética? Você é?
F.M.: Não saberia responder isso… Talvez a poesia do dia a dia, do cheiro de um café, de um raio de sol na janela. Mas não sei responder se ela era era ou se eu sou. Mas a obra “Azirilhante”, em seu conjunto, acho que carrega um forte traço de poesia. Poesia, pois não tem a preocupação de ser prosa, de explicar o que há entre as linhas, deixa expostos os espaços vazios.
C.C.: Esta peça é um modo de lidar com a perda ou de encontrar respostas para a morte de sua mãe? O que ela simboliza?
F.M.: Não. Tive outros caminhos para lidar com essa perda, mais terapêuticos mesmo e sinceramente nunca busquei respostas para a morte dela. O exercício de aceitar o que a vida trás me acompanha sempre. Talvez eu seja uma pessoa que busque mais perguntas do que respostas… Mas acredito que a peça seja resultado (um dos milhares possíveis) de um processo de superação. Não apenas da morte dela, mas dos vazios da vida, do não saber que me (nos?) acompanha sempre. Acho que é difícil definir um único símbolo para esta peça, mas certamente libertação é um deles.
C.C.: Ao mesmo tempo, a peça tem um componente engraçado, especialmente durante a sua interação com a plateia e o deboche em relação à necessidade de sempre se fazer alguma coisa. Por que encaixar o alívio cômico?
F.M.: Não é um encaixe, e nem um alívio. Às vezes a risada faz doer mais do que o choro. E também acredito no humor como uma forma saudável e inteligente de entrar em contato com o desconhecido, com o que nos amedronta. Humor só existe por identificação, e acredito ser uma excelente ferramenta para viver com leveza. Minha mãe me ensinou isso.
SERVIÇO
“Azirilhante”
Teatro Eva Herz – Conjunto Nacional (dentro da Livraria Cultura)
Av. Paulista, 2073, Bela Vista
Sábados, às 18h
R$ 40
Até 25 de maio
tags: azirilhante, flavia melman, monólogo, teatro, teatro eva herz